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terça-feira, 9 de outubro de 2012

Um novo Concílio seria um perigo


A visibilidade crescente de quem “sempre esteve contra tudo”, a nova evangelização, o Ano da Fé e os problemas em Portugal e na Europa analisados por D. José Policarpo

religionline
D. José Policarpo considera que a tendência representada pelos bispos que, no Vaticano II estiveram “sempre contra tudo” é mais visível. Em entrevista à agência ECCCLESIA, o cardeal-patriarca de Lisboa analisa as surpresas e novidades do Concílio, há 50 anos, os processos de receção, que hoje acontecem em ambiente de nova evangelização. Sobre esse projeto refere que corre o risco de “ser integrado “na estrutura”. E analisa o sistema económico-financeiro que determina por vezes soluções únicas para os países da União Europeia

Ecclesia - Tinha sido ordenado há um ano, quando o Concílio começou. Como viveu esses tempos?
D. José Policarpo – O Concílio foi um acontecimento empolgante, que mobilizou a Igreja toda. Nós, que éramos jovens, vibrámos muito com o Concílio.
Foi uma surpresa! João XXIII surpreendeu toda a gente.
A primeira sessão foi muito difícil. Sentiu-se um confronto entre a expectativa gerada no mundo, que era de renovação da Igreja, e o trabalho das comissões que prepararam o Concílio. Nesse trabalho, entre 1959 e 62, retomaram um velho dinamismo – esse nunca tinha morrido – de retomar o Concílio Vaticano I.

E – Alguns pontificados anteriores tentaram-no…
DJP – Sim, todos eles… Pio XII chegou a ter uma comissão nomeada para retomar os trabalhos do Concílio Vaticano I.
O Vaticano I foi interrompido pelas vicissitudes militares da reunificação italiana: estava a decorrer quando Roma foi conquistada, tendo os padres de sair à pressa para os seus países. Estavam a discutir um documento sobre a Igreja, tendo só aprovado a infalibilidade do Papa. E acabou por nunca ser encerrado.
Havia a ideia que era preciso retomar o Concílio Vaticano I, o que acabou por influenciar os documentos elaborados pelas comissões preparatórias do Concílio Vaticano II.
Na primeira sessão verificou-se o confronto entre a expectativa de que os bispos de todo o mundo eram portadores – tirando um pequenino grupo que sempre reagiu até ao fim – e essa documentação que lhes foi entregue.
Por isso a dificuldade da primeira sessão. Os bispos começam por rejeitar o primeiro documento que lhes foi apresentado, que retomava as condenações, sobretudo contra o modernismo, dizendo que o Concílio não se reunia para condenar, mas para anunciar.

E – E aí está uma novidade deste Concílio?
DJP – Esta é uma surpresa, mais do que uma novidade. É uma primeira manifestação de que o espírito do Concílio vai ser outro.
A grande novidade do Vaticano II está no facto de, ao contrário de todos os anteriores concílios, não se reunir para esclarecer pontos de doutrina e defini-la dogmaticamente.
Por isso, na primeira sessão, os padres conciliares rejeitaram os mais de duzentos documentos preparatórios.

E – A Cúria Romana estaria a pensar que os padres conciliares votassem esses documentos preparatórios, encerrando o Concílio rapidamente?
DJP – Não sei, em termos de Cúria Romana. Nessa altura conhecía-a mal. O que há é um confronto entre a burocracia mesmo teológica e a expectativa conciliar.
Com a rejeição de todos os textos preparatórios, fica-se no vazio…
Há duas intervenções no último dia da primeira sessão, 4 de dezembro de 1962, que saudámos nessa altura com muito entusiasmo: uma do cardeal Montini, que sucederá ao Papa João III, e outra do cardeal Suenens, arcebispo de Bruxelas.
A primeira é do cardeal Suenens. Disse que o Concílio deve responder a uma pergunta: “Igreja que dizes de ti mesma para anunciar ao mundo o Evangelho?”. O cardeal Montini diz que a Igreja só pode responder a esta questão se se reencontrar com Jesus Cristo e a tradição que vem desde a época apostólica.
São estas duas intervenções que determinam a nova preparação dos documentos a debater pelo Concílio, reduzindo-os primeiro a 17 e depois a 13 textos (a Gaudium et Spes durante muito tempo não teve título, chamando-se Esquema XIII, o que originou, por exemplo um nome para um programa do padre António Rego na comunicação social). A perspetiva deste esquema era essa mesma: Igreja que pensas de ti mesma e que renovação precisas de fazer para seres enviada ao mundo.

E – Esse Esquema XIII, como outros documentos, eram resultado de debates alargados, em Roma e noutras cidades, como em Zurich. Trata-se de uma nova metodologia para pensar a doutrina católica?
DJP – Essa é por certo a dimensão que teve no Vaticano II uma amplitude muito maior em relação a outros concílios: o entusiasmo e a participação das igrejas de todo o mundo, e mesmo de fora da Igreja, no que acontecia em Roma. Deve-se, entre outros elementos, ao número dos padres conciliares (no Vaticano II estão mais de 2000 bispos presentes, enquando os anteriores não tinham reunido mais do que algumas centenas), o que é um sinal da universalidade e da expansão da Igreja pelo dinamismo missionário em todo o mundo. Por outro lado, o Concílio beneficia dos modernos meios de comunicação, fazendo com que tudo o que se passava em Roma se soubesse no dia seguinte em todo o mundo.

E – O facto de não ser um Concílio para decretar dogmas ou condenar heresias constitui uma força ou uma fraqueza do Vaticano II?
DJP – É uma força.
A exatidão doutrinal não está excluída. No esforço de pensar a Igreja, o Concílio está a fazer doutrina. Simplesmente não está a definir dogmas.
Não há nenhuma definição dogmática no Concílio Vaticano II. Há novidades doutrinais (como é o caso da compreensão do episcopado, confusa e com várias correntes até essa ocasião, aí assumida como a plenitude do sacerdócio apostólico).

E – Essa natureza do Concílio não gerou ambiguidades na posterior receção?
DJP – O Concílio gerou uma euforia. Houve pessoas que pensaram que o Concílio ia mudar tudo. E as coisas que queriam mudar mudaram-nas dizendo que era o Concílio que permitia.
Houve muita euforia conciliar que não tem nada a ver com a solidez da mensagem conciliar. Houve e continua a haver…

E – O Papa Bento XVI, num discurso à Cúria Romana em 2005, rejeita a rutura e afirma a continuidade que o Concílio terá constituído em relação aos tempos anteriores, na Igreja. É de facto, de continuidade que se trata?
DJP – O Concílio é um acontecimento marcante. Em termos de História da Humanidade é o maior acontecimento do séc. XX.

E – Em termos culturais?
DJP – Em termos de acontecimento, que inclui aspetos culturais, pessoais… É um grande acontecimento.
O Concílio assume francamente os dois aspetos: continuidade e um tempo novo. Não se pode falar em rutura. Na Igreja só existe rutura com o pecado.
A continuidade tem uma característica interessante, no Vaticano II: não se trata de uma continuidade com o ontem, mas com o antes de ontem. O modelo de Igreja que inspira a compreensão da Igreja do Vaticano II é a dos primeiros mil anos de história, da época apostólica e patrística, esquecida e relativizada desde a escolástica (caraterizada pela racionalidade da teologia e do pensar e fé e pelo confronto com a reforma protestante, um acontecimento traumatizante para a Europa que mobilizou as tomadas de posição do magistério durante 200 anos, na contrareforma). Tinha-se perdido muito essa beleza e serenidade da compreensão apostólica da Igreja.
É preciso ter em conta que o Concílio acontece na continuidade de grandes movimentos que tinham nascido na Igreja nos finais do séc. XIX e início do séc. XX. Um deles é certamente teológico e da renovação eclesiológica, pela escola alemã e por grandes nomes, que o serão também do Concílio Vaticano II - como Henri de Lubac, Ives Congar, Karl Rahner, padre Chenu - que tinham feito um movimento teológico de recuperação da imagem da Igreja da época apostólica e patrística.
Por exemplo, o padre Congar tem um livro dos anos 30 sobre o laicado. É um grande tema que vai ser recuperado. Como as “Meditações sobre a Igreja” do padre Lubac.
Este movimento teológico vai ter uma influência muito grande. São homens fazedores do Vaticano II, que eram vistos como progressistas, como teólogos perigosos. O Cardeal Cerejeira, por exemplo, não gostava nada que lêssemos o padre Congar (uma vez disse-me: “sei que andas a ler esse francês…!”).
Outro movimento que tem uma importância muito grande é o movimento litúrgico, desde os anos 20. O D. António Coelho, beneditino, ou o monsenhor Pereira dos Reis, são alguns nomes que foram chaves nesse movimento. Esse movimento litúrgico origina, por exemplo o vernáculo na liturgia, ainda antes do Concílio, ou a reforma da vigília pascal, nos anos 53 ou 54.
Ou ainda o movimento missionário, no primeiro quartel do séc. XX, que oferece um entusiasmo missionário...
São movimentos que se vão repercutir na grande assembleia que é o Concílio Vaticano II.

E – O conceito de Igreja como povo de Deus será a grande novidade do Concílio? E daí já se tiraram todas as ilações?
DJP – Não só essa… O aspeto mais relevante é a identificação da Igreja com Cristo. A constituição Lumen Gentium começa por dizer que a luz de Cristo deve refletir-se no rosto da Igreja.
O Concílio é todo cristocêntrico. Por vezes pensa-se que é sobretudo eclesiológico, que tem a Igreja como assunto, mas não.
A primeira manifestação da compreensão da Igreja é a sua identificação com Cristo. Ela é o corpo de Cristo.
Por outro lado, o Concílio retoma a compreensão, relativizada na eclesiologia anterior, da unidade entre o Antigo e o Novo Testamento. Depois de se afirmar claramente a relação fundamental com Jesus Cristo, o Concílio diz que “a Igreja é o novo Povo de Deus”. Trata-se de um passo muito importante, ainda não completamente dado porque é muito difícil ultrapassar a visão clerical da Igreja para a considerar uma assembleia de todos os cristãos. Também na responsabilidade. A esse Povo de Deus é dito que participa de todos os dons do ministério do próprio Cristo: é um povo sacerdotal, de profetas, real.

E – Porque não está ainda dado esse passo?
DJP – A receção do Concílio deu passos enormes, mas não se deram os passos completos. É ainda reduzido o grupo do laicado que assumiu a dignidade e a responsabilidade de ser membro do povo sacerdotal, com todos os direitos e deveres. Por outro lado, a visibilidade do clero não se equaciona de novo rapidamente: é um consagrado, está a tempo inteiro ao serviço da Igreja, é ele que preside… Passar desta conceção à consciência de que o sacerdote preside em nome de Cristo, mas é a Igreja que celebra, que ele tem uma responsabilidade particular na evangelização, mas é a Igreja que evangeliza, leva tempo…

E – No processo de receção do Concílio, como deve a Igreja ser coerente com a sua natureza sobrenatural - é Igreja de Cristo - e estar permanentemente em diálogo com o mundo?
DJP – Isso só se compreende tendo em conta uma parte que normalmente não se fala do Concílio vaticano II: essa nova relação da Igreja com a humanidade supõe uma realidade ao mesmo tempo muito misteriosa e muito real: Cristo ao fazer-se homem marcou todos os homens. E há uma semente do verbo, como lhe chama santo Ireneu, no coração de cada homem. Há uma unidade da humanidade profunda e prévia entre a Igreja e a humanidade, que dá à Igreja o horizonte para a sua relação com a humanidade. Ela não se relaciona com gente completamente estranha, mas marcada pelo facto de Deus se ter feito homem.
Devido a esta unidade, a Igreja afirma que nada do que é humano lhe é estranho. Por isso a Igreja pode, nesta consciência de uma humanidade construída não por ela mas pelo Verbo Encarnado, olhar a história da humanidade positivamente, com esperança.
E o Concílio vai ao ponto de dizer que, neste olhar positivo e tendo em conta a ancestralidade cristocêntrica que há entre a Igreja e o mundo, ela pode descobrir sinais da presença do Reino de Deus (os tais “sinais dos tempos”).

Nova evangelização e receção do Concílio Vaticano II
E – Que relevância deve ter esse olhar da Igreja, concretamente nos dias de hoje?
DJP – O Papa Bento XVI, na “Porta da Fé” (a Carta Apostólica onde proclama o Ano da Fé) reafirma a atualidade do Concílio. E ainda bem que o fez, porque há vozes a pedir um Concílio Vaticano III, outros a achar que o Concílio está ultrapassado. E usa uma expressão que responde a essa questão: o Concílio pode ser para o séc. XXI a bússola segura de orientação da vida da Igreja desde que lido e compreendido à luz de uma sã hermenêutica (o que significa ter em conta o destinatário no anúncio da mensagem). Esse é talvez o desafio maior com que a Igreja se confronta na atual receção e anúncio da mensagem do Concílio que é, a meu ver, ainda mais atual do que há 50 anos.

E - Mas o diálogo com o mundo não é hoje diferente? Não há problemas novos?
DJP – Há! Os problemas agravaram-se. A globalização é talvez o elemento mais significativo da mudança nestes últimos 50 anos. O mundo hoje é todo uma aldeia. E por causa da comunicação, estamos mais sensíveis a ela. Mas a globalização é mais grave do que isso: é a transposição universal de problemas e visões erradas e verdadeiras. E ainda não se definiram, a nível mundial, objetivos para a humanidade pelos quais todos lutem (há de ser uma próxima etapa).

E – Na recente assembleia de bispos da CCEE, onde participou, afirmou-se que a maior epidemia da Europa é o desespero, a falta de esperança. Como se anuncia o Concílio neste ambiente?
DJP – A receção do Concílio tem de ser sempre feita em chave positiva: conhecer a realidade para saber como anunciar. O Papa Bento XVI, ao falar da necessidade de uma sã hermenêutica deu-nos a chave: fé e nova evangelização.
Há hoje uma grande coincidência com os motivos que levaram à convocação do Concílio: João XXIII, de regresso à Europa, desconhece o continente e, para saber como anunciar o Evangelho a um mundo que mudou, decide convocar um Concílio; João Paulo II, quando fala da nova evanglelização diz que não se trata de uma reenvalização, retomando métodos e esforços, antes um novo ardor da fé, pelo acolhimento da Palavra de Deus e do mistério de Cristo, e a ousadia de caminhos novos. E aí temos muitas dificuldades, porque as diferentes sugestões correm seriamente o risco de serem integradas na estrutura…

E – Terá sido isso que aconteceu nas iniciativas onde Lisboa já esteve envolvida, tanto no Congresso Internacional para a Nova Evangelização como na Missão Metrópoles?
DJP - Não tenhas dúvidas… Deixa sempre um certo resultado que só Deus conhece no coração das pessoas. Mas dou um exemplo mais claro: no princípio a nova evangelização provocou entusiasmo, mas hoje já está “aprisionada” pela estrutura. Hoje não há secretariado, quer em Roma, quer nas dioceses que não sinta necessidade de ter um “capitulozinho” sobre a nova evangelização. Será isso? Não é!

E – Então será o quê?
DJP – É preciso estar garantido um novo ardor da fé, que supõe escuta da Palavra de Deus, da voz da Igreja e da celebração sincera da Páscoa de Jesus. E não acertámos ainda com os novos caminhos.
Outro exemplo: o cardeal Ravasi, presidente do Conselho Pontifício para a Cultura, teve a ideia brilhante de incluir um setor nesse departamento a que chamou o “Átrio dos Gentios” (uma designação do Templo de Jerusalém, reservada para a oração dos que não eram judeus). É uma ideia bonita! Os caminhos novos não estarão, no entanto, na organização de grandes encontros como o que vai acontecer no Norte, no contexto das capitais europeias da juventude e da cultura. Não significa que não seja válido, mas poderia chamar-se outra coisa: um simpósio, um congresso…
O átrio dos gentios significa encontrar maneira de entrar em diálogo com as pessoas que estão fora da Igreja, mas com inquietações no coração, precisando de espaços mais simples para partilhar. O que não pode acontecer em estrutura eclesiástica e clerical.

E – Há quem afirme que tanto esta iniciativa do “Átrio dos Gentios” como outras mais diretamente relacionadas com a nova evangelização dão antes resposta àquele grupo de pessoas que o último Inquérito sobre as identidades religiosas em Portugal denominou “crentes sem religião”.
DJP – Não necessariamente. João Paulo II lança-a no contexto da América Latina. Se eu a reduzo a um capítulo sistemático da estrutura eclesiástica atual, eu mato o conceito à partida, não aproveitando a provocação que incluía.

E – Será que se descobre a novidade dessa expressão num sínodo?
DJP – São momentos importantes.

E – Não seria mais importante descobrir essa novidade em dinamismo sinodal permanente que envolvesse todos os crentes?
DJP – O Sínodo tem uma dimensão de universalidade notória e é importante para reconduzir à unidade os diferentes desafios e sensibilidades.

E – Os Sínodos serão os Concílios dos tempos atuais, com abordagens temáticas ou por regiões?
DJP – Não. Eu acho que outro Concílio seria um perigo. O Vaticano II não está recebido suficientemente para marcar o ritmo desse Concílio.
Nunca desapareceu completamente da Igreja um grupo pequeno de bispos do Vaticano II que estiveram sempre contra tudo, não assinaram documentos, alguns provocaram ruturas.

E – E um novo Concílio poderia dar mais relevo a esse grupo?
DJP – Não sei imaginar. Mas essa tendência está hoje com mais visibilidade do que há 30 anos. Curiosamente, as vozes que falam de um III Concílio têm dois sentidos: uns acham que é preciso ir muito mais longe nas mudanças da Igreja (ordenar as mulheres, deixar os padres casar…); a outra tendência quer rever o Vaticano II, tendo a coragem de dizer que se foi longe de mais. Isso é um perigo! O grande desafio da Igreja é continuar a fazer a receção do Concílio Vaticano II, na fidelidade.

Problema em Portugal é maior do que as dificuldades económicas
E – Que análise faz sobre os tempos atuais, os tempos em que se procura fazer a receção do Concílio? Que Portugal somos, como estamos a ser governados e a receber as diretrizes da Europa e do poder financeiro?
DJP – Acho que estamos a julgar e a reagir a uma situação muito séria, de destino e de verdade fundamental do nosso povo e da Europa, a partir da “comichão” que nos fazem as dificuldades económicas do presente. Não somos redutíveis a isso!
O problema de Portugal e o problema da Europa é mais fundo do que isso: é um problema de compreensão da pessoa humana, é uma dialética crítica e clara das ideologias que têm marcado a cultura contemporânea e que passam todos os dias nas leis que nos fazem e na comunicação social como se fossem verdades adquiridas para o bem da humanidade. E não são!
O que a nossa civilização está a adulterar é o conceito de homem e de comunidade humana.
Estas crises são fruto de um erro e de uma incapacidade, primeiro da União Europeia e depois da humanidade. A União Europeia nasce para responder à destruição da Guerra. O mais urgente naquela altura, pela motivação do Plano Marshall e pelas necessidades de uma Europa destruída, é a reconstrução económica e até física da Europa. Mas os fundadores da União têm consciência de que se não se constrói uma cultura nova, isso não é suficiente (e de Robert Schumann a célebre frase “A Europa ou será cultural ou não será”).

E – A Europa é predominantemente económica e financeira?
DJP – 99,9%...

E – E isso é um erro?
DJP – É. Criaram-se modelos de vida e expectativas no povo que levaram a gastos desnecessários para se ser equilibrado e feliz!
Eu ainda sou do tempo em que o valor da moeda era decidido pelo padrão ouro e em que as finanças estavam completamente ao serviço da economia, sendo necessário investir e produzir para ter lucro. Hoje, o valor da moeda é um dos principais problemas.

E – O Euro foi uma precipitação?
DJP – O Euro surgiu porque antes se tomou a opção de o valor da moeda deixar de ser o padrão ouro para ser a saúde da economia (um país com uma economia sadia tem uma moeda forte; com uma economia fraca tem uma moeda fraca).
Quando se fez esta mudança – que ninguém deu por ela – a União Europeia, por ter por principal plano a convergência económica, precisou de uma moeda. Durante anos, até se chegar à moeda física que hoje existe, havia uma moeda de referência, o ECU, que era o reflexo da verdade ou inverdade das diversas moedas.
O Euro nasce do facto do valor das moedas ser a saúde da economia, num espaço que quer ter a economia convergente e coordenada, impossível com as moedas mais diversificadas.

E – Como reagir a essa circunstância e às diretrizes financeiras da União Europeia?
DJP – O momento que alguns países estão a viver, entre os quais o nosso, são fruto de um otimismo ingénuo! Quando a finança e a economia se separaram e o mundo financeiro passou a ser uma fonte de lucro sem produção económica, que se decide por computador, provocou em muitos países projetos utópicos de bem-estar, com consequências nas famílias que se endividaram, nas empresas (mesmo assim foram as que melhor souberam reagir) e nos investimentos públicos. E com consequências ainda mais gravosas pelo aproveitamento da facilidade da movimentação do dinheiro para outros fins que não o bem comum. Perdeu-se muito a noção do bem comum.

E – A corrupção…
DJP – Mais do que isso. Trata-se de um egoísmo individualista de quem abandonou os critérios éticos da honestidade e não hesita em se aproveitar dessa facilidade da circulação de dinheiro. Isso originou endividamentos públicos que num determinado momento são incontroláveis.
Agora, o Governo está sob fogo! Mas os responsáveis somos todos nós.

E – E não tem alternativas?
DJP – Eu não me sei pronunciar. São aspetos muito técnicos…

E – A ditadura do défice é incontornável?
DJP – É. Estamos inseridos num sistema económico-financeiro liberal. É um facto. Chamem-lhe capitalismo, economia liberal ou neoliberal. Dos sistemas conhecidos na humanidade é o que mais respeita uma liberdade fundamental, que é a liberdade económica e o direito de propriedade. Mas tem defeitos.
Espero que em plano Europeu e mundial, esta crise gere uma reflexão sobre o próprio sistema económico em que estamos inseridos.
Para a maior parte dos problemas que estamos a enfrentar, há uma solução, não duas. A arte do Governo é aplicá-la com sabedoria.

E – A Comissão Nacional Justiça e Paz, no recente documento “Os números e as pessoas”, condena precisamente esse determinismo. Não há alternativas?
DJP – Para algumas sim. Para a dívida pública, por exemplo, creio que não há alternativa.
Não há alternativa, isto é: a aplicação das medidas ao concreto da vida de cada país pode ser diferente.
Assumindo que honestamente não me sinto capaz de me pronunciar e não o devo fazer como bispo, desejaria muito que, na busca das soluções, mesmo que só uma, quando aplicada com sabedoria, se poupassem mais os que mais sofrem.
Diante desta hecatombe de problemas que esta situação gerou, a Igreja reagiu não com discursos mas com ação, com a atenção à pessoa concreta, ao próximo, ao problema real da família que ficou atingida. Hoje já ninguém fala sobre o contributo da Igreja. Não faz mal. Mas o que me dá mais alegria é que a Igreja enquanto tal não entrou na balbúrdia de críticas, comentários e soluções, mas atuando, estando atenta aos problemas reais das pessoas.

E – O que deseja para Portugal, para a Igreja Católica em Portugal?
DJP – Solidariedade na caridade. Se formos solidários, nós os portugueses temos possibilidades de resolver os problemas que os nossos irmãos estão a passar. Não as grandes questões económicas, porque isso não nos compete. Mas no terreno: é preciso aprender a partilhar, a ser solidário, a olhar para o irmão com o coração.
Gostava muito que os portugueses não se deixassem manipular pelas diferentes correntes que tentam… Tudo o que está a acontecer das manifestações, greves: não resolvem nada! Temos de adquirir uma serenidade que é fruto da esperança. Isso é possível! Portugal passou épocas muito mais difíceis do que esta (basta pensar no que foi a última Guerra).
Cada português, seja ele quem for, não se pode considerar apenas beneficiário da ajuda do Governo e dos outros. Tem de ser protagonista da solução. Se todos formos solidários, o momento difícil que Portugal atravessa – que o é para muitos, mas não para todos – pode trazer um rosto novo à nossa convivência.
O que me preocupa mais é que todas as pessoas tenham a dignidade que merecem e que o tempo que vivemos exige. Mas não sejam ambiciosos. Que se contentem com o necessário e com o que é possível.
E que sejamos uma fraternidade. O mais grave disto tudo é que se está a destruir o sentido de comunidade nacional.

Sucessão e Ano da Fé
E – Que oportunidade espera que o Ano da Fé constitua para o Patriarcado de Lisboa?
DJP – Ele inspira todo o programa de pastoral.
No último conselho de vigários apresentámos uma síntese de todas as iniciativas que já estão no terreno para o Ano da Fé. Muitas são da Santa Sé, apresentadas no site que criou para esse fim, outras são nossas, locais. Estamos neste momento a lançá-las.
O grande desafio deste ano é aprofundar a fé, viver a fé.
O Santo Padre foi muito feliz ao dizer-nos que a fé é uma “porta”, porque nos abre para um caminho difícil, uma espécie de peregrinação dolorosa. Não se trata apenas de uma atitude intelectual, mas de uma mudança de vida.
Depois, interessa valorizar os conteúdos da fé (estão pobres no povo de Deus). O Catecismo da Igreja Católica é o grande instrumento, assim como o Youcat, para os jovens.
Quando eu digo “eu creio”, o que é que isso significa? Tomo isso a sério?
O Santo Padre sugeriu que, na oração pessoal, as pessoas rezem o credo, e não só a Ave-maria.
Em terceiro lugar, a “Porta da Fé” sugere também que esta fé é a fé de um povo, a fé da Igreja. Tem uma longa tradição. Isso relativiza o que na nossa época, marcada pelos individualismos, pode ser preocupante: dizer “eu acredito como acho que tenho de acreditar”.
A fé é um dinamismo de renovação pessoal da vida - a isso chama-se vocação à santidade - e é um desafio de anúncio, de ser testemunha. Os grandes crentes foram sempre testemunhas, não da fé pessoal, mas da fé da Igreja.
Nesta época, depois da pós-modernidade, de criatividade individualista, gostaria de acentuar que cada um de nós não tem a sua fé. Pertence a um povo, tem a fé da Igreja. Depois o anúncio: ter fé é empenhar-se no anúncio.
Vamos ver se conseguimos fazer uma espécie de peregrinação, ao longo deste ano, em que a fé seja mais conscientemente vivida.

E – A nível nacional, na Conferência Episcopal a que preside, este ano será de continuidade do projeto “Repensar a Pastoral da Igreja em Portugal”? Em que ponto está?
DJP – Ainda não está em “ponto-morto”, mas quase... É muito difícil. As igrejas são muito diferentes, de Norte a Sul, e não sei se estamos preparados para assumir uma única concretização desse tipo, a nível nacional. Mas não está morto.

E – O dossier está em aberto?
DJP – Sim. Em princípio irá para a próxima Assembleia Plenária, e espera que eu o analise.

E – Pessoalmente, no trabalho na diocese e na Conferência Episcopal, continua o pressuposto que comunicou em 2011, no dia da Igreja Diocesana, de que o Papa lhe pediu para estar mais dois anos?
DJP – Sim, termina no próximo dia 26 de fevereiro. O resto o Santo Padre dirá, estou nas mãos dele. Graças a Deus tenho saúde, tenho um amor muito grande a esta igreja, mas não farei nada para qualquer solução pessoal. Eu não sou uma pessoa, sou membro de uma igreja que, neste momento mal ou bem, tem as suas estruturas e os seus ritmos. E não escondo que também me atrai um tempo mais silencioso, sem ter de dar entrevistas…

E – A organização da pastoral não está condicionada por esses tempos?
DJP – Não. Eu tenho dito aos órgãos de pastoral: isso não é um problema, é um pormenor. A Igreja terá sempre um bispo diocesano.

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